30/04/2012

SER
Se um dia te disserem que ser é fácil, acho melhor que duvides. Pelo menos, não acredites de imediato. Dá a ti próprio um tempo de reserva e de reflexão, antes de acreditares. Estou convencida que se o fizeres, rapidamente vais perceber que ser não é fácil.
Queres que te explique?
Muito bem, vou tentar.
Existir não é sinónimo de ser.
Uma pedra existe mas não é. O meu carro existe mas não é. As tuas mãos existem, mas não são.
Existir é ter forma, corpo, matéria… é ter um carácter observável, palpável, acessível aos sentidos, mesmo que apenas num plano de representação mental.
Ser pressupõe um existir que se mistura com outras existências… existências que se encontram, que se tocam e que se sentem (des)harmoniosamente.
Há uma grande distância entre aquilo que existe e aquilo que é… não sendo nada fácil tornar em ser aquilo que apenas existe, ainda que para ser seja imprescindível existir.
Percebes agora porque digo que ser é extraordinariamente mais difícil do que existir?
A paixão não é, existe. Mas eu sou. E tu também.


29/04/2012

DENTRO
Se olhasse
talvez se perdesse
na escuridão da noite sem estrelas e sem luar.
Por isso
nunca se enrolava sobre si próprio
nunca se dobrava à procura do centro
e jamais olhava para dentro.






28/04/2012

CHEIRO MOLHADO
Passou a tarde toda à chuva. 
Atravessou a cidade de uma ponta à outra sem vergonha, sem impermeável e sem pressa de abrigo.
Sentia uma excitação desmedida, um prazer arrepiado com aquela carícia fria nos pedaços de pele nua. Parou num jardim, inspirou profundamente o cheiro molhado e quando o sentiu a correr nas veias, decidiu que era tempo de voltar para casa.
Só teve tempo de tirar as botas encharcadas... tinha na boca um sabor antigo e doce que a fez correr até ao quarto. Abriu a gaveta, vasculhou, revolveu, misturou e, por fim, encontrou-a. Estava dobrada e ligeiramente amachucada. Já não tinha a brancura e a juventude de outrora, mas até parecia mais bonita, com aquele tom amarelado. Ainda cheirava suavemente a jasmim.
Desdobrou-a, ficou um tempo a observa-la e começou a ler:
Meu querido,
esta é a primeira carta de amor que te escrevo.






26/04/2012


RESPIRAR

Humberto acordou
com vontade de renascer
mas não se lembrou
que para ressuscitar
antes é preciso morrer.
E para além disso
não havia tempo para isso
lembrou-se de Dulce
que era preciso acordar
para ir a correr estudar
porque o futuro não espera
e se não se correr
fica o risco de o perder.
Dulce acordou
entre bocejos e suspiros
chorou e protestou
porque queria dormir mais
sonhava com fadas e animais
num mundo de fantasia
onde não se fugia nem crescia.
Arrastando-a para o futuro
Humberto cruzou-se com Maria
que se queixou de uma dor no peito
mas ele
sem tempo para parar
disse-lhe que de amor nada tinha para lhe ensinar
portanto
para sair da sua frente
e fazer como toda a gente
aprender a respirar
mas sempre sem pensar.
Maria seguiu o conselho
esqueceu-se das dores e pintou-se de cores
começou a respirar
mas não deixou de pensar
e não se lembrando disso
deve ter sido por isso
que se sentiu sufocar
como um peixe sem mar
degolado por um anzol
que o arrastou para uma caixa
estreita e baixa
sem ar e sem sol
fechada por uma mulher
que a levou para o mercado
como um peixe pescado
morto e derrotado.
Acontece porém
que  a peixeira vendedora
era também sonhadora
e sabedora
das voltas e reviravoltas da paixão
e lembrando-se do Artur no caixão
prometeu que nunca iria vender
um peixe pescado
morto e derrotado
apenas porque respirou
ao mesmo tempo que pensou.
Levou-o na mão
até à onda mais próxima
soltou-o na água
e mandou-o viver
lembrando-lhe
que antes de peixe
era Maria
aquela que sofria
com uma dor no peito
a quem alguém
com falta de jeito
mandou afastar
e respirar sem pensar.
Humberto voltou para casa
com Dulce pela mão
olhou para ela e achou
que nunca ninguém encontrou
um sorriso tão verdadeiro
tão quente e tão inteiro
e deixou-se ficar
envolto e deslumbrado
mas de repente ocorreu-lhe
que ainda não tinha jantado
queria peixe para saborear
mas não se lembrara de o pescar
por isso
bebeu leite e comeu pão
misturados com solidão.
Ao engolir
Humberto sentiu-se explodir
com uma dor
aguda no peito
e com um trejeito
lembrou-se de Maria
aquela a quem dissera
que a realidade não se pode mudar
mas apenas aceitar.
Agora
a agoniar
talvez já não se consiga lembrar
que aceitação
é sinónimo de resignação
e a negação de qualquer revolução.


24/04/2012


CONTEMPLAÇÃO
Rodou o manípulo, na esperança que não estivesse trancada… mas estava. Se tivesse a chave, seria simples e o caso resolver-se-ia num minuto. Mas a chave há muito que andava perdida, já a tinha procurado em todos os lados, até nos recantos mais escondidos da sua existência. Mas nem sinal daquele objecto metálico, pequeno mas grande, banal e fundamental. Se ao menos os vidros fossem transparentes… sempre podia espreitar lá para dentro! Mas eram espessos e foscos, completamente à prova de qualquer olhar indiscreto. Deu-lhe um encontrão com toda a força, mas a madeira era sólida e ignorou o esforço.
Não lhe ocorreu outra alternativa… sentou-se de frente para ela e ficou a contemplá-la
(recordando todas as vezes que por ela entrou e saiu).


23/04/2012

ÓBVIO
Há qualquer coisa nas palavras dela que me fascina. Principalmente quando as diz com um sorriso, como se dissesse a coisa mais óbvia do mundo.
- Melancolia? Melancolia é uma tristeza doce.


Albert Asensio

22/04/2012


PARTO SEM DOR
... e ao terceiro dia de agonia, Clara choveu. Num ápice, aproveitando uma rajada forte de vento, de um só fôlego, livrou-se do ar inchado, do tom acinzentado e do peso das formas. Iluminada por uma trovoada de primavera, deu à luz milhões de minúsculas gotas de água, expulsando-as de si, espalhando-as na atmosfera, devolvendo-as ao mundo original. Ficou a vê-las cair, pequeninas, ingénuas e desprotegidas. Soprou-lhes um beijo, suspirou de alívio e sorriu. Um dia, todas elas voltariam a si.
  

21/04/2012

ROUBA-ME
Amanhã bem cedinho
        rouba de mim o afago deste fogo
                e num abraço murmurado
                          despe de mim 
                                  o vestido da saudade.
Frida Kahlo

19/04/2012

SEGMENTOS
Os corpos encostavam-se envergonhados uns aos outros e seguiam disciplinadamente o ritmo imposto pela máquina. O ar cheirava a pessoas.
Repetidamente, a velocidade abrandava, um ruído estridente anunciava a paragem, os corpos mexiam-se e renovavam-se, saíam uns, entravam outros, acomodavam-se o melhor possível e a máquina voltava a acelerar. Uma mulher berrava para o telefone, um bebé chorava, um miúdo assobiava, uma jovem ouvia música, um homem olhava para os sapatos. Eles, sentados, com um encosto de tecido rasgado a separá-los. Ela não sabe que ele lá está. Ele não sabe que ela lá está.  Nenhum deles sabe que, nesta viagem, um não pode existir sem o outro. Quando ela olha pela janela para ver, ele já viu qualquer coisa que o fez pensar e olhar em frente. Quando ela se vira para a frente para pensar, ele volta a precisar de olhar pela janela. A perfeita sincronia de movimentos fazia com que os três – encosto de tecido rasgado, ela e ele – formassem uma peça única, com segmentos que se moviam delicadamente, numa harmonia perfeita.
Os corpos continuavam a lutar desenfreadamente pela conquista de espaço. Precisavam de respirar, estranhavam as formas e o calor dos outros corpos que se lhes colavam. Por isso queriam sair rapidamente dali, acotovelavam-se, precipitavam-se pela porta, fugiam a correr.
Eles continuavam sentados, encostados um ao outro sem o saberem, olhando e pensando alternadamente... como segmentos delicados de um único mecanismo, cúmplice e absolutamente perfeito.

Leah Piken Kolidas

18/04/2012


VISITA-ME
Gostava que hoje viesses visitar-me. Temos muitas coisas para falar, tenho muitas coisas para te contar.
Tens andado desaparecido, não te tenho sentido por aí... que se passa? Andas deprimido? Distraído? Cansado? Ou apenas indiferente?
Se vieres, conto-te as últimas novidades.
Falo-te da Sónia que ontem se deliciou ao jantar com um pão que tirou do saco de lixo da vizinha. Falo-te do Nuno que hoje faltou à escola para poder visitar a mãe no hospital psiquiátrico. Falo-te do António que toda a vida foi músico e na semana passada vendeu o piano e a guitarra para pagar a renda. Também te posso falar da Cristina que durante anos lutou para ter um lar e esta noite vai deitar os filhos numa casa sem tecto nem paredes. E do Alberto que aprendeu a prever o futuro olhando para os sinais que ficam no copo vazio do vinho rasca que bebe. E da D. Olinda que está só, cheia de filhos esquecidos e de netos desconhecidos, acreditando que ainda vive, apenas porque respira. Ou do Miguel que um dia seria médico, não fosse a morte do pai  roubar-lhe o sonho e o sustento da família. Ou da Paula que adorava cantar e agora só sabe chorar. Falo-te com certeza da Isabel, mulher ciumenta e possessiva, que deixou o marido emigrar em busca de um futuro melhor... mas ele perdeu-se de amores em terras estrangeiras e apenas lhe mandou uma carta sem dinheiro nem paixão. Posso falar-te da Esperança, da Catarina, do Fernando... e tantos outros que, de repente, deixaram de ver o nascer do sol. 
Como vês, tenho muitas coisas para te contar... por isso era urgente que hoje viesses visitar-me. Na confortável reclusão em que te tens mantido, não sei te apercebeste que o mundo mudou. E que ameaça mudar ainda mais em cada instante que passa. No que me diz respeito, confesso que já não espero grande coisa da tua parte, sabes que sempre tive muita dificuldade em acreditar nas tuas promessas. Mas há muitas pessoas que te esperam e que desesperam com o teu silêncio e passividade. Por isso acho que chegou a hora de agires, de mostrares o poder que sempre apregoaste ter.
Fico à tua espera, vem logo que possas. Tudo ficará dito, temos a noite inteira à nossa frente. 

17/04/2012


AO CONTRÁRIO
Violeta vivia ao contrário.
Gostava de gatos pretos, mas tinha um canário amarelo numa gaiola dentro de casa.
Gostava de morangos e chocolate, mas era alérgica a ambos.
Gostava de contemplar o mundo, mas era míope e a janela da vizinha era a paisagem mais longínqua que conhecia.
Violeta de nome, ela gostava era de vermelho e de se chamar Rosa!
Gostava de comboios, mas viajava sempre de autocarro.
Gostava de luz, mas morava num rés-do-chão cheio de sombra.
Gostava de praia, mas nunca tinha visto o mar.
Violeta acreditava no amor
mas consta que foi enganada
às vezes trocava o próprio nome
e em vez de Violeta
dizia Violada.
Quando à noite se deitava e desejava
que a manhã rapidamente voltasse
olhava para o relógio
e via os ponteiros a troçar e a recuar.
Violeta gostava de palavras doces
mas um dia o mel acabou
esconderam-se todas as letras numa gaveta
e Violeta nunca mais falou.
Ismael Nery

16/04/2012

CALAR
Olhou para ela duramente, sentindo que do peito nascia uma fúria que ameaçava queimar-lhe rapidamente a garganta. Abriu a boca, mas saiu apenas um murmúrio. Melhor assim. Ela continuava inerte, numa apatia patológica. Pousou-a perto das outras e ofereceu-lhe um último olhar. Melhor assim, não dizer. Que ingenuidade... esperar que uma pedra vibre e se amacie.
Virou costas, engoliu as palavras, meteu as mãos nos bolsos e foi.

15/04/2012

SONHO
Hoje apetece-me sonhar com flores e sei que vou sonhar com flores.
Há dois factos que me parecem legitimar tamanha certeza.
No livro que ando a ler, o autor diz qualquer coisa como podes conseguir dominar tudo, até os impulsos mais primitivos, mas os sonhos nunca conseguirás dominar, mesmo que neles te surjam os fantasmas mais assustadores. 
Por outro lado, li algures num artigo científico que é possível controlar o que sonhamos, bastando para isso que façamos um determinado conjunto de exercícios de concentração, de modo organizado e continuado, no momento imediatamente anterior a adormecermos.
Assim sendo, acho que não restam dúvidas... a mim, não restam.
Já com a cabeça na almofada, farei afincadamente o tal conjunto de exercícios... sem receio de não ter sucesso... porque se o meu esforço não for suficiente, tenho a certeza que o Haruki Murakami tem toda a razão... os sonhos não se podem dominar.
Por isso hoje, inevitavelmente, vou sonhar com flores.
Fernando Forero

13/04/2012

A PONTE
Hoje de manhã, bem cedinho, abri a janela e vi o arco-íris.
Deixei-me estar... observando... absorvendo. 
Sacudi de mim a poeira científica que me fez lembrar da ilusão de óptica, dos aborrecidos conceitos de dispersão, refracção e reflexão da luz.
Passei pela lenda do pote de ouro que espera aquele que for capaz de descobrir onde acaba o arco colorido.
Lembrei-me da mágica ponte entre o céu e a terra, entre a alma e o corpo... e aí fiquei: uma colorida ponte entre nós. 

11/04/2012

COLECCIONADOR
Todos os dias, depois do trabalho, percorria aleatoriamente as ruas da cidade, com um único e fundamental objectivo: colher palavras. Era um obsessivo e incontrolável coleccionador de palavras. Procurava-as em todos os lugares, nos jardins, nos recantos, nas praças, nas esquinas. Era metódico e criterioso na selecção: as palavras neutras, as objectivas, as técnicas, as científicas e todas as outras cuja única utilidade era a de servir para a comunicação quotidiana não lhe interessavam. Escolhia apenas as palavras, ouvidas ou escritas, que eram feitas de afecto. Sempre que se cruzava com uma, apanhava-a cuidadosamente e guardava-a num saco preto que o acompanhava para todo o lado. Havia dias em que a colheita era má, o mundo parecia ter emudecido e a sua tarefa tornava-se árdua e desconcertante… chegou a acontecer voltar para casa com o saco vazio… era o pior que lhe podia suceder. Mas noutros dias, facilmente encontrava palavras interessantes, ora porque o vento soprava na sua direcção e lhas trazia nítidas e quase intactas, ora porque a cidade estava especialmente repleta de apelativas mensagens escritas. Chegava a casa com o saco a abarrotar de palavras inquietas e curiosas. Pousava o saco e ia tirando e colocando em cima da cama cada palavra colhida. Esvaziado o saco, ficava a contemplá-las durante algum tempo, organizava-as depois por categorias e suavemente soprava cada uma para dentro da grande gaveta da cómoda. Depois, dobrava o saco e colocava-o junto à porta de casa, pronto para receber a colheita do dia seguinte. Voltava ao quarto, fechava à chave a gaveta da cómoda, pegava num caderno grande e volumoso, sentava-se na cama e anotava as palavras que tinha colhido.
Um dia, tudo aquilo acabaria. De certo, nessa altura iria sentir-se nostálgico e algo perdido, mas sabia que esse era o único desfecho possível. Quando o caderno grande e volumoso chegasse ao fim, quando não restasse mais espaço para registar qualquer outra palavra, por muito curta que fosse, seria tempo de escancarar a gaveta, de acordar as palavras adormecidas e de as inspirar profundamente, todas, uma por uma. Nessa altura, todas elas passariam a ser suas, a fazer parte de si e da sua vida. Com elas, escreveria então a história que sempre quis escrever.
Lida Moser




09/04/2012

DESPIR
Basta despir o acessório.
Tirar o sobretudo defensivo e depois
ir deitando ao lixo as camadas sucessivas de preconceito, censura, vaidade, cinismo, mentira e autoritarismo.
Suavemente, libertar a fina película de controlo.
Depois
apreciar o prazer da pele nua
arrojada, curiosa e ávida de diversão.
Ser criança. 
Basta despir o acessório.

02/04/2012


VIAGEM
Da vontade de ir
inquieta-me o prazer de partir.
Do desejo de voltar
invade-me a doce alegria de regressar.

Nicoletta Ceccoli

01/04/2012


ACREDITAR
Anita não acredita em Deus. 
Não sabe quando aconteceu ao certo (nem sempre foi assim), mas um dia deixou de acreditar... assim, tranquilamente, sem dramas, nem culpabilidade.
Houve momentos na sua vida, principalmente naqueles em que se impunha tomar uma decisão importante, que desejou ser crente, sentir em si a devoção necessária para colocar a sua vida nas mãos de alguém que todos conhecem, mas que nunca ninguém viu.
Anita gosta do ritmo das orações na missa, mas quando se concentra no conteúdo de uma avé-maria, não consegue encontrar significado nas palavras desse murmúrio colectivo.
Não há nada a fazer... Anita não acredita em Deus. 
Mas acredita que tem um anjo.