31/05/2012

Há uma história
que te quero contar
sem palavras
sem falar.
Queres ouvir?
Começa num arrepio
que não é de frio
e numa suave melodia
que nos estremece a noite inteira
e assim fica até ser dia.

 Kristina Sabaite


30/05/2012

NADA
Tudo se resume a nada
se a manhã não me trouxer
um cheiro húmido
de relva a acordar
um suave chilrear
pronto a voar
e um fio de emoção
que me escorra do olhar.

Sue Hill

29/05/2012

Um dia vou ser capaz de construir uma estrada até ao céu
e depois viajo nela toda a noite.
Regresso de manhã, bem cedo
a tempo de te acordar
e de te beijar
com uma estrela na mão.

Loreto Salinas

27/05/2012

A FOME DOS DIAS
Os dias devoram o tempo
e o tempo já sabe
que de nada vale lutar
contra os dias ávidos e esfomeados
que passam e
por isso
limita-se a existir
impotente.
Há um tempo de saudade
que sonha em voltar um pouco atrás
ou de expectativa
que deseja avançar um pouco adiante.
Há o tempo que foi nosso
engolido sem aviso
digerido nas estranhas de um dia
que ainda há pouco era hoje
mas que hoje já chamamos ontem.
E há um tempo de primavera
que o amanhã engolirá rapidamente
para nos fazer lembrar
que a felicidade começa e acaba
em cada cereja saboreada.
Há um tempo
que apenas queria permanecer um pouco mais
sem passado nem futuro
um tempo de paixão que
os dias cinzentos e esfomeados
esmagam sem emoção
e convictos
de que sempre assim será
porque nunca deixará de haver tempo
como alimento
para os dias que o devoram o tempo.

Jun Kamaori

26/05/2012

BANHO
Não vale a pena lutares contra isso. É assim mesmo, por mais voltas que dês, por mais estratégias que uses, por mais expectativas que alimentes, de nada serve. Não lutes contra a realidade – afinal não é ela que te acompanha fielmente todos os dias, para onde quer que vás? É quase injusto, tentares ludibriá-la, afrontá-la. E não me atires com aquela ideia da fantasia ser essencial, que é preciso colorir o mundo, mundo esse que devia ser feito de paixão, cumplicidade e sonhos. Isso é um disparate! E que confuso, inquieto e perigoso seria esse teu mundo! Vá, acorda lá... já é dia, levanta-te, vai para banheira e lava bem esses restos nocturnos de emoção que ainda tens agarrados na pele.

Edgar Degas

25/05/2012

SORRISO *
Ana vivia infeliz
porque o que mais queria na vida
era sorrir
mas o problema é que
não tinha dentes para mostrar
e sorrir sem dentes era algo
que não queria experimentar.
Alguém lhe disse que os podia encomendar
achou estranho isso de haver sorrisos à venda
mas dediciu arriscar
e lá foi despachada à procura de dentes para comprar
certa de que depois de o fazer
um sorriso enorme lhe voltaria ao rosto
e assim feliz podia viver.
Voltou
deslumbrada com tantos dentes bonitos que viu
mas cansada e desanimada
porque eram dentes caros
e não os podia comprar.
Assim se conformou
que tudo iria ficar
tal e qual como era
antes de acreditar
que há sorrisos para vender
desde que haja dinheiro para os comprar.

Masaya Horiguchi

 * mais uma prova de que vivemos num país miserável, completamente indiferente à saúde e ao sofrimento dos cidadãos... não somos todos iguais, não... há quem não tenha dinheiro para poder comprar um sorriso feito de dentes saudáveis.

24/05/2012

ESVAZIAR
Nunca soube identificar com exactidão o momento em que decidiu que queria esvaziar. De igual modo, nunca conseguiu descobrir o real motivo de tal decisão. Mas era uma ideia insistente, essa do esvaziamento. Por isso, desde muito cedo se debatia com formas ardilosas, algumas até bizarras, de ficar vazio. No início, não foi difícil. Começou por diariamente ir despindo as inúmeras camadas que, a partir de certa altura, deixaram de lhe fazer falta: futilidades, conversas estéreis, discussões infrutíferas, teorias inúteis, conhecimentos acessórios, atitudes de conveniência e um sem fim de detalhes completamente banais. Passados alguns anos, um olhar atento perceberia facilmente que o seu exterior se encontrava já bem mais liso, tornara-se um homem mais leve e muito menos opaco, mas apenas ligeiramente mais vazio. Decidiu então iniciar uma nova fase, esta bastante mais difícil, a de desbastar continuamente as suas sucessivas camadas internas, até as extinguir por completo. Encontrando uma ponta solta daquilo que achou ser o novelo da sua existência, aproveitou-a e foi puxando cuidadosamente o fio, retirando de si decepções, angústias, solidões inconfessáveis, esperas entediantes, conquistas que não ousou, medos paralisantes e todas as outras nódoas negras que tinha dentro de si. Sentindo-se, ainda assim, demasiado pesado e cheio, virou-se do avesso e sacudiu com vigor todas os restos em decomposição e todas as poeiras da vida. Assim passou mais um longo tempo, trabalhando neste processo, dia após dia, com o afinco de quem acaba de descobrir a sua real vocação. À medida que os dias iam passando, o seu interior ia ficando cada vez mais macio e maleável. Todas as manhãs se olhava no espelho e avaliava a perfeição do seu trabalho: um contorno cada vez mais fino e ténue, uma pele transparente e, principalmente, o olhar progressivamente mais baço, que lhe devolvia a certeza de que tudo estava a ser feito como previsto,  como tinha de ser. Estava cada vez mais vazio e esse sempre fora o objectivo. Tratou de se desfazer rapidamente de tudo o que lhe pertencia, deixou o trabalho, desligou o telefone, queimou os livros, rasgou as cartas e  deu o cão.
Finalmente, era chegado o dia decisivo, o dia tão intensamente desejado. Era o momento de inspirar profundamente, suster a respiração o tempo suficiente para lhe percorrer o resto de pessoa que já era e, de um só fôlego, expirar violentamente, expulsando de si as memórias, os afectos, os beijos, as lágrimas, a esperança e a paixão acumulada durante toda a vida.
Enquanto ainda lhe restava alguma energia, abriu uma cova no jardim, enterrou todos os destroços de si e voltou a fechá-la. Entrou em casa, apagou as luzes e deitou-se na cama. À sua frente, uma noite inteira de chuva, uma noite inteira para desfrutar do prazer de, enfim, estar completamente vazio.
Na manhã seguinte, um raio de sol avivou a brancura de um lençol coberto de uma suave poeira. No centro, um coração que batia ainda, suavemente.
Lá fora, no jardim, no monte de terra revolvida, via-se um pequeno e frágil caule verde claro.



23/05/2012

VIBRAR
Acreditar
que por um
segundo
se pode ser dono do mundo
e ousar
saltar
só pelo prazer de agarrar
de voar e de
vibrar.
                                            
Fernando Botero

22/05/2012

AMOR
Ela disse-me que estava triste
que descobriu que o amor não existe
e perante tal descoberta
não sabe como subsiste
à saudade que de noite a aperta
num abraço frio e furioso
e que de manhã a solta
como um resto de mulher
sonolenta e desnutrida.
Eu disse-lhe que estava errada
que o amor existe e
persiste e
sempre assim será
enquanto houver manhãs de primavera
e janelas abertas de par em par
e uma brisa de mar
que entra em nós
sem ninguém a convidar
e que aí fica
a repousar
e a lembrar
que é de amor que se fala
quando os olhares se entrelaçam
cúmplices e
convictos
de que, no fim dos dias
quando o livro se fechar
nada mais importará
do que ter sabido amar.
Vladimir Kush

21/05/2012

MAR
Eu já te tinha dito, peixinho vermelho. Os peixes não têm asas, nem cordas vocais, nem pele para arrepiar... por isso, não voam, não falam e não sentem. Os peixes nadam! Apenas isso, ora embalados por ondas suaves, ora sobrevivendo a tempestades violentas. Vou levar-te para o mar, está bem? Para o teu mar. Lá, serás mais tu e serás mais feliz.
Nicoletta Ceccoli

20/05/2012


CHAMA
Naquele pequeno instante
que sabiamente fugiu do tempo que corria veloz
e se escondeu num simples pestanejar
sobrevive uma chama
que percorre agora a rua deserta
subindo degraus incertos
tropeçando nas pedras soltas
e, perdida na escuridão,
salta habilmente por uma janela aberta
caindo desamparada no chão de madeira escura
arrastando-se com esforço até ao sítio
onde uma festa acontecia
era uma cama
onde se dançava e gemia
e ali ficou
sossegada e atenta
entre os corpos quentes que festejavam.
Ao longe
ouvia-se o rodopio furioso do tempo
prestes a voltar.
Pouco tempo restava
à chama sobrevivente
e antes que o pestanejar se fizesse olhar
inflamou-se e tornou-se
uma verdadeira chama corajosa
quase fogueira
daquelas que nenhum tempo consegue arrastar.


18/05/2012


UNS E OUTROS
Há quem passe o dia a varrer o chão e a limpar sanitas, ou a olhar para um computador, ou a despejar contentores de lixo, ou a curar feridas do corpo e da alma, ou a ensinar os filhos dos outros, ou a vigiar o sono dos que dormem, ou a semear e colher, ou a fazer casas, ou a apagar fogos, ou a defender inocentes, ou a fazer almoços e jantares.
E depois há outros, detentores de todos os saberes do mundo e que, do fundo almofadado de um cadeirão confortável, passam o dia a ensinar como se trabalha. No tempo que lhes resta, dão voltas à cabeça procurando uma forma criativa de embelezar o aspecto mórbido e de disfarçar o sabor amargo do dinheiro que recebem no fim de cada mês.  


16/05/2012

DAVID
Tinha o olhar profundo da mãe e a voz doce do pai. Chamava-se David e morava numa casa amarela, numa pequena cidade costeira. Sempre fora conhecido como excêntrico, bizarro no comportamento e estranho nos modos. Andava quase sempre sozinho, mas nunca parecia infeliz ou aborrecido. Falava imenso, mas a maioria das pessoas não chegava a perceber o que dizia… na verdade, falava mais consigo próprio do que com os outros. Dizia-se que era capaz de actos prodigiosos, mas nunca ninguém assistiu a nenhum deles. Mas sabia-se que era capaz de falar com as gaivotas, contar-lhes histórias e era, de facto, um regalo vê-lo sentado na areia, com dezenas de aves à volta, silenciosas e atentas às suas palavras. Também se dizia que era capaz de negociar com o vento e com a chuva, acalmando-os nos seus acessos de fúria invernal e que cantava canções de amor para as árvores em flor que, assim apaixonadas, davam à luz frutos doces e deliciosos.
David tinha muitos sonhos, queria fazer muitas coisas, ir à lua, deitar-se numa nuvem, caminhar sobre o mar… mas só fazia o que lhe apetecia e quando lhe apetecia. E ninguém ousava contrariá-lo porque, na verdade, todos estavam convencidos que, naquele rapaz de 18 anos de olhar profundo e voz doce, havia um dedo do diabo.
Certa manhã, David subiu com determinação ao cimo de um penhasco debruçado sobre o mar e aproximou-se da berma, arrastando-se lentamente até ficar apenas com metade dos pés na terra; verificou com satisfação que o vento não tinha faltado ao combinado, sentindo o corpo ondular, para a frente e para trás. Flectiu ligeiramente as pernas, encheu o peito de ar e saltou.
No dia seguinte, os meios de comunicação social informaram que o corpo de um jovem fora encontrado no mar, falando-se de queda acidental, especulando-se com a hipótese de suicídio. Tudo isto com imensas entrevistas a vizinhos e conhecidos, que asseguravam que se tratava de um excelente rapaz, embora um bocado amalucado.
Ninguém se lembrou, entretanto, de que ele talvez só quisesse voar.

15/05/2012

ERA UMA VEZ
Conta-me uma história bonita
cheia de surpresas e aventuras
com fadas e heróis
e desejos e magias
e conquistas e vitórias.
Quando estiveres quase no fim
devo já ter adomecido
por isso sussurra-me ao ouvido
o resto dessa história bonita
e inventa-lhe um final feliz.

14/05/2012


ACREDITAR
Enquanto houver um sonho de infância por realizar
repetidamente acordado na primeira cereja saboreada
enquanto houver uma multidão a dançar na rua
ao som de risos e palmas ruidosas
e uma bandeira colorida para agitar
por uma ideia que nem o tempo fez desbotar
enquanto houver um sonho para acarinhar
e teimar
com a realidade imposta pelos que já não sabem sonhar
enquanto houver um mar inteiro para beber
em grandes goles de ondas frescas e salgadas
numa noite de luar de silêncio e de abraços
enquanto houver primavera
e um ninho no beiral da janela
e árvores  carregadas de flores e vento
enquanto houver um céu no olhar
sorrisos generosos
livros para ler
e palavras para dizer
e ouvir
enquanto houver barrigas grávidas de filhos desejados
crianças para embalar
canções para cantar
e colos para oferecer
enquanto houver casas com lareira
e camas sem lençóis
e amantes sem frio
decididos a matar a saudade com beijos doces
como se esse fosse o único propósito da vida
enquanto houver calor e amor
enquanto houver paixão
é preciso acreditar.

Constantin Brancusi

13/05/2012

INGENUIDADE
Que ingenuidade... com tanto que já andaste, é escandalosamente ingénuo que assim penses. Só porque as cortinas da janela não se mexeram toda a tarde, não significa que o vento deixou de existir... isso aconteceu porque a deixaste fechada! Experimenta abrir a janela... verás como as cortinas dançam, suavemente onduladas pela melodia desta brisa de primavera.





11/05/2012

BOLO *
Ficou lindo. Doce e macio como ela gosta, como ela é. Em forma de coração e com cobertura de chocolate. Por dentro, é colorido, tem camadas alternadas de ternura e de encantamento, pedacinhos de fantasia e um leve travo de cumplicidade. Decorei-o com malmequeres e espalhei em toda a superfície milhares de beijos doces e um abraço apertado no centro.



* Para a Mariana, com todo o amor do mundo

09/05/2012

UMA CASA 
Era um bairro de pequenas casas antigas, umas dez talvez. Impecavelmente restauradas, com telhados novos, paredes pintadas, madeiras limpas e metais polidos. Todas exibiam vaidosamente um pequeno jardim à frente, repleto de flores e relva cuidada onde, nos dias de calor, crianças barulhentas brincavam e cães ladravam. Tinham roupa lavada nos estendais, mulheres à janela, bicicletas encostadas, campainhas que tocavam, gente a entrar e a sair, todos os dias, a toda a hora.
Era um bairro bonito e convidativo, não fosse aquela casa... a casa mais triste do bairro. Tinha um aspecto desolado, com cortinas amarelecidas e esfarrapadas que lhe davam um olhar de animal abandonado. O rosto, onde se viam ainda ténues restos de azul claro, era marcado por fortes rugas de humidade e tinta descascada. O jardim era um amontoado de ervas daninhas e lixo de toda a espécie. Era uma casa parada e deprimida, incapaz de emocionar quem quer que fosse, mesmo aqueles que se detinham à sua frente, olhando-a e abanando a cabeça com ar reprovador. Era uma casa que assistia ao passar do tempo completamente imóvel, vazia de qualquer indício de vida. 
Numa noite de primavera, quando todas as casas tinham já adormecido, uma mão surgiu da escuridão, aproximou-se da casa triste, entrou por uma janela sem vidros e depositou um fósforo aceso no seu coração.

Sergio Membrillas

08/05/2012

LÁGRIMA
Há muito tempo que tinha uma lágrima presa na garganta. De nunca ter visto a luz do dia, não era uma lágrima líquida, era um cristal de forma bizarra, sem a transparência própria das lágrimas, com um aspecto acinzentado de amargura carbonizada. Acontece que naquele dia, a garganta que abrigava a lágrima incendiou-se... não se sabe como aconteceu, apenas se constatou que a pele começou a arder, a fumegar e, num ápice, o lar tranquilo da lágrima inerte transformou-se numa fogueira de labaredas incontroláveis. E foi então que sucedeu: acordada pelo calor incandescente do incêndio, a lágrima cristalizada começou a amolecer, a derreter, lentamente foi perdendo a forma dura e metálica, foi-se diluindo cada vez mais até se tornar numa gota de água salgada, com aroma de emoção, uma verdadeira lágrima líquida, morna e fremente, pronta a ser chorada. Da garganta incendiada, começou a deslizar uma canção nostálgica em forma de lamento e, agarrando-se a essa melodia murmurada, a lágrima soltou-se, deslizou suavemente pelo peito e caiu num pedaço de chão relvado. Mobilizadas por essa lágrima corajosa, outras lágrimas desconhecidas se foram soltando da garganta fumegante... no chão molhado, formou-se uma poça de água salgada e enérgica que rapidamente se transformou num riacho e depois num rio, rio que fez transbordar o mar, mar que inundou cidades, refrescou pessoas, alagou campos e arrastou para longe amarguras e desencantos. 
Lavado, fresco e tranquilo, o mundo pode finalmente descansar.

06/05/2012

É TEU
Cerra os punhos
e luta
é uma espécie de batalha que
tens de vencer
agarra o lençol branco e amarrotado
e chama a força ao centro de ti 
não importa se é noite ou dia
é o instante que esperavas
pensa no quarto pintado de fresco
e na cama com a colcha que fizeste
podes chorar, não faz mal
mas tens de respirar
dizem-te para ajudar
que está quase a acabar
mas sabes que está ainda a começar
e as mãos que te remexem por dentro
contam agora um, dois, três
e tu só pensas
era uma vez
num país longínquo
uma fada chamada coragem
chamas baixinho
o colo que te acolheu
quando há muito tempo
quiseste descobrir a vida
mas agora
quanta agonia
para fazer nascer o mundo
fechas os olhos
e queres abandonar-te
mas
de repente
um alívio quente
molha-te a pele
e um suave fio de luz 
docemente te penetra o olhar.
Enfim
aquele calor ensanguentado no peito
que cheira a mel
e cheira a ti.
É teu.

Stefano Vitale

05/05/2012

RIO
Dentro de mim há um rio
fresco e
cristalino
onde mergulho de corpo inteiro
e de corpo inteiro me entrego
nadando e
descobrindo
um desejo que não se extingue
nadando e
saboreando
um prazer líquido sem nome.
Nadando
apenas nadando
na água fresca e cristalina
que corre dentro de mim.

04/05/2012

DESCANSO
Depois de um dia inteiro a ser fustigada por frio e tempestades, pode enfim descansar. Envolta num vento delicado e morno, a noite chegou, calma e suave e não tarda a sussurrar-lhe uma bela canção de embalar.

M.D. PERRY

02/05/2012

A LOJA
Quando às nove horas da manhã D. Florinda entrou, soube que o estava a fazer pela última vez. Como sempre, deixou a porta entreaberta, abriu o estore, regou as plantas, sacudiu o pó na secretaria e pôs a tocar Chopin. Por fim, sentou-se na cadeira, provocando o habitual gemido da madeira antiga. Pegou na caneta e começou a escrever. De vez em quando, espreitava pela janela, com um olhar que rapidamente se cansava da paisagem e logo fugia para o aconchego da pequena loja. Assim passava toda a manhã. Ao meio-dia, saía para almoçar, entrava na confeitaria da avenida, sentava-se na mesa do canto e, passados alguns instantes, a empregada trazia-lhe, com um sorriso doce, o almoço de todos os dias - uma torrada e chá de camomila. Comia devagar, folheando distraidamente o jornal. Quando terminava, deixava o dinheiro em cima da mesa e saía, despedindo-se da empregada doce e do patrão carrancudo com um ligeiro aceno de cabeça. O tempo de pausa que sobrava aproveitava-o para passear pela rua, quando o tempo estava bom. Se chovia ou o frio era insuportável, metia-se numa livraria e lia.  Às duas da tarde, pontualmente, voltava para a loja, de novo deixava a porta entreaberta e abria o estore. Habitualmente, este período do dia era destinado a organizar as estantes. Eram apenas duas, encostadas à parede, lado a lado, feitas de madeira escura. Todos os dias D. Florinda executava o mesmo ritual, com empenho e genuína satisfação. Tirava-as cuidadosamente das estantes e colocava-as em cima da secretaria. Limpava o pó, retocava as etiquetas de cada prateleira e voltava a coloca-las no sítio. A organização era cuidadosa, quase obsessiva. Na estante da esquerda, mulheres; na estante da direita, homens. Tanto numa como noutra, a mesma sequência nas quatro prateleiras, de cima para baixo – deslumbramento, paixão, saudade e ruptura. Quando pegou na última para arrumar, aproximou-a do nariz e sentiu o cheiro de papel velho misturado com um longínquo e quase irreconhecível aroma de pétalas de rosa. Colocou-a no respectivo lugar, encheu o peito com um suspiro profundo e foi sentar-se na velha cadeira de madeira. Habitualmente, voltava a pegar na caneta e recomeçava escrever. Mas naquele dia, a partir daquele momento, tudo seria diferente. Colocou em cima da secretaria o embrulho que tinha deixado no chão; cortou o fio e desdobrou o papel grosso. Pegou na placa e ficou a olhar para ela, observando cada letra, juntando uma por uma até chegar à palavra que lhe fez lembrar que aquele não era um dia como outro qualquer. Ao longo de vinte anos, D. Florinda foi proprietária de uma pequena loja, um espaço exíguo, pouco maior do que um quarto, onde acanhadamente cabiam apenas uma secretária, uma cadeira, duas estantes e alguns vasos com plantas. Era uma loja de papeis e envelopes, de várias cores e texturas. Era uma loja de cartas de amor.
Durante muitos anos, D. Florinda escrevia-as por encomenda, personalizando-as com todos os detalhes que o cliente pedia, descrevendo amores arrebatados, desejos ardentes, saudades guardadas, dores dilacerantes ou desilusões insuportáveis. Nos últimos tempos, é verdade que já não tinha clientes; excepto o Sr. Luís, que mora perto do mercado... desde que a mulher morreu, todos os sábados de manhã, bem cedinho, passa pela loja, pede uma carta de saudade, escrita em papel com cheiro a lavanda e vai ao cemitério, deixa-la no túmulo da sua amada; como nunca vê a carta que deixou na semana anterior, a ingenuidade dos seus 87 anos fá-lo acreditar que a falecida a vem buscar e a leva consigo para o seu mundo silencioso - claro que a D. Florinda, todos os sábados, à  hora de almoço, vai sorrateiramente ao cemitério retirar a dita carta pousada com saudade em cima do jazigo e a leva consigo. Quando o negócio começou a abrandar, D. Florinda não desistiu e todos os dias abria a loja, seguindo o mesmo ritual de arrumação e organização; no resto do tempo, ia escrevendo cartas de amor, umas atrás das outras, que depois arrumava cuidadosamente no sítio correcto, consoante o seu conteúdo.
Eram seis da tarde quando D. Florinda se levantou da velha cadeira de madeira, deu uma vista de olhos a cada prateleira, pegou na carteira, fechou o estore, apagou a luz, saiu, fechou a porta à chave e pendurou no puxador a placa branca, com letras pretas: vende-se.
Afastou-se em passo ligeiro, sem nunca olhar para trás. 

Emile Levy
ENFIM
Remou toda a noite. Um pouco antes do sol nascer, viu ao longe o que sonhava há muito. Os músculos doridos, o peito a arfar, a cabeça a sufocar... mas finalmente a chegar. Pousou o remo, recostou-se, fechou os olhos e deixou-se embalar.

Riccardo Guasco

01/05/2012

PROMESSA
Devolve-me o azul sereno do céu e a doçura das manhãs de primavera. Mostrar-te-ei o lugar secreto onde dormem todas as palavras que não são ditas.